quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Opinião - Pedro Belo Ravara

Descobri hoje um texto que me pediram há já tempos idos sobre o MV, o qual se mantém actual. Penso que o posso usar agora, até porque nunca o foi para qualquer outra coisa.

Reproduzo:

No meu segundo dia no Atelier MV, em Macau, ainda em contactos preliminares com os desenhos, maquetas, esquiços e ideias que esvoaçavam nas células/salas contíguas e contínuas que formavam o atelier da Rua do Volong, acompanhei o arquitecto Manuel Vicente a uma reunião no Instituto de Acção Social de Macau (IASM), hoje penso extinto ou com nome diferente, onde se iria debater a continuação do projecto da 2ª fase do FAT CHI KEI, ganho por concurso público pelo Manuel Vicente, e até aí com fase de Estudo Prévio concluída e entregue. O arquitecto MV partia na semana seguinte para Lisboa, eu tinha acabado de chegar, adivinhava-se o arranque imediato da fase seguinte deste projecto com a entrega do respectivo relatório do IASM. Passou-se em princípios de Novembro de 1988, com a minha licenciatura ainda fresca e diploma datado de Julho desse mesmo ano. Nessa reunião, foi-nos lido o relatório do corpo técnico do IASM sobre o Estudo Prévio desenvolvido a partir da fase inicial ganhadora do concurso. O relatório consistia de uma lista quase infindável de alterações, que derivavam de modificações ao programa inicial, alterações morfológicas, opiniões divergentes, etc., não percebendo nós nunca da sua extensão ou fim, porquanto não seria o arquitecto MV lhe ter posto um fim ao interromper com, mais ou menos, a seguinte frase "Meus senhores, nós vamo-nos, a partir de agora os contactos serão dirigidos ao meu advogado."

A minha experiência profissional resumia-se a participações ao nível do desenho e representação do projecto e, pontualmente, o acompanhamento de alguma obra de interiores. Pedia-me agora o arquitecto MV que liderasse processos de projecto na(s) sua(s) ausência(s) de Macau, que envolviam não só responsabilidades de projecto para escalas e competências nunca até então por mim experimentadas, como as responsabilidades de gerir "batalhas" e "conflitos" que normalmente estes projectos geram pela sua intervenção multi-politica. O projecto do FAT CHI KEI acabou por correr normalmente atendendo às trocas de secretários-adjuntos, directores de serviço e técnicos que acarretavam também trocas de "estratégias" (nunca muito claras) e tempos para as levar a bom termo. Foi o desafio dos três anos que se seguiram, não só relativamente a este projecto mas a todos os que fui sendo envolvido, desenvolvendo um rigor da regra que caracterizava, diferentemente, cada um deles, que me "formou" na via profissional, não só de um ponto de vista da sua competência técnica, mas também, e sobretudo, da sua competência ética.

Dos projectos em que colaborei activamente (convicto e alegremente) integrado na equipa do MV em Macau, contam-se, além do FAT CHI KEI, o WTC, os primeiros estudos da Universidade da Ásia Oriental e Bombeiros da Areia Preta, os edifícios da Horta e Costa e, a encomenda que ocuparia o atelier durante todo o ano de 1990, os planos de urbanismo, pormenor e alguns de arquitectura, para o Fecho da Baía da Praia Grande. Estes planos haveriam de mudar a face de Macau nos anos posteriores dotando-a de uma nova contemporaneidade, ainda não totalmente visível ou decifrável. No entanto esta alteração começou desde a primeira altura em que MV chegou ao território, o visitou e decidiu desenhar sobre o seu futuro. Os planos, edifícios, recuperações e interiores que acrescentou à cidade de Macau desde os anos sessenta, desde sempre que ambicionavam a um profundo sentido do espaço social reinterpretado especificamente para Macau e sobre as vivências de Macau, por um lado, e um outro sentido mais reconhecível genealogicamente, mais universalista também, de entender o acto do projecto como a descoberta da regra de uma forma exaustiva, talvez como o teria feito (e daí a genealogia), o arquitecto Frank Loyd Wrigth, o Louis Kahn ou o Carlo Scarpa.

Enquanto permaneci projectista ao lado de MV, percebi e colaborei no desenho dos seus projectos como o seu braço direito o faria, aprendi a contornar e a controlar a regra, a desistir de uma opção por se tornar incongruente e a voltar ao princípio com o enriquecimento do reiniciar, tornei meu o seu método exaustivo, porque exaustiva é a profissão do arquitecto Manuel Vicente.

A amizade e interesses comuns à arquitectura unem-nos hoje, já não em volta das partilhas vividas na invenção dos seus projectos, buscas operadas no tempo da memória e no tempo físico, noites claras na descoberta de regras lançadas, pontos coincidentes de malhas tetraédricas, formas emergentes de vontades geometrizadas à regra inicial, profecias sobre uma geometria lançada como a equação para todas as variáveis, até que por fim, a igualamos a zero, mas na certeza porém que vale ainda a pena lutar por uma prática profissional que se tem dissipado.

Hoje, como ontem continuo a acreditar na prática da arquitectura como a garantia da independência do arquitecto, porque só pela sua prática ele poderá exprimir toda a tradição cultural e artística que nos distingue de outras práticas mais corporativas ou comerciais. A Ordem terá de se centrar sobre essa mesma prática, aberta aos seus membros (a todos), recusando a promoção da arquitectura apenas enquanto seu objecto resultante.

Pedro Belo Ravara
(candidato ao Conselho Nacional de Delegados pela lista C)

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